04 janeiro, 2006

António Gancho (1940-2005)

"Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura/Loucura!"

Foi este soneto que António Gancho assinou, quando lhe pedi que me escrevesse um poema na primeira página do seu livro "Ar da Manhã". O original, de Antero de Quental, não é bem assim. No último verso, a palavra "Loucura" não consta, mas Gancho não a eliminou e deixou as duas palavras com um risco ao alto para que fosse eu a escolher, talvez porque nem ele próprio soubesse o que era melhor.

Morreu o poeta que ouvia, ao longe, "a voz negra e fundamental do galo". E pela primeira vez, sinto-me verdadeiramente triste por uma morte literária. Conheci António Luís Valente Gancho, no Hospital Psiquiátrico do Telhal, onde o fui entrevistar, com o Helder, para uma revista da faculdade que estávamos a lançar. Eu era uma pessoa muito mais fresca do que hoje e as situações dessa viagem foram todas novas para mim. Por isso, recordo praticamente todos os minutos desde que arranquei de Braga, até chegar ao hospital que tem um túnel por baixo da estrada por onde se chega lá.

António Gancho estava diagnosticado como esquizofrénico paranóico e cinco minutos de conversa com ele não deixavam dúvidas. Mas a clareza e a bondade com que falava de certos assuntos (um "parnasiano", como dizia) transformou-o no meu poeta pessoal, e o melhor de todos os que conheci. Aprendi com ele que a loucura não é senão outra forma de ver o mundo. E que a poesia é pouco mais do que uma forma de o descrever. Maior parte dos versos que sei de cor são dele. E cada vez que abro o Ar da Manhã, sinto uma frescura descomplexada a vir de lá. Perguntei-lhe porque é que o livro se chamava Ar da Manhã. A resposta não poderia ter sido mais simples: porque o ar da manhã é o mais fresco de todo o dia e a poesia deve ter frescura. E quando lhe perguntámos porque é que afirmava que o Mário de Sá-Carneiro lhe tinha roubado a obra, disse como se lhe estivéssemos a fazer a pergunta mais absurda do mundo: "O Mário de Sá-Carneiro sou eu! Eu sou toda a poesia!".

A minha homenagem a ele é esta. E deixo só o primeiro verso desse livro, de cor, com todos os erros associados.

Sobre a natureza das coisas não sei pronunciar-me

1 comentário:

Anónimo disse...

Muitos parabéns pela excelente crítica. Mais um Poeta Português que morre e só mais tarde terá a luz que merece.